Clássico quase perdido desta nômade que mesmo 9 anos após sua morte, ainda possui fãs fiéis
Por Luiz Athayde
Ainda bem que essa sessão é infinita. Com tantas cantoras e compositoras que nos presentearam com seus álbuns magníficos ao longo da história, ficaria difícil referendar somente uma; mesmo se não dividirmos em subcategorias como, por exemplo, carreiras proeminentes interrompidas repentinamente. E neste caso, por um câncer de mama, ceifando no dia 1º de janeiro de 2010 aos 37 anos, o último sopro de vida da artista nova-iorquina e cidadã do mundo Lhasa de Sela.
Nascida no dia 27 de janeiro de 1972 com ascendências mexicana e judeu-libanesa proveniente de um professor e uma fotógrafa, Lhasa cresceu entre as estradas do México e os Estados Unidos, e anos mais tarde viveu entre o Canadá e a França. Na sua infância, todas as noites, ao invés de agirem como uma “família tradicional” com tv na sala, Lhasa se divertia com os pais e as irmãs encenando pequenas peças ou cantando.
Tal salada cultural e, principalmente, de vivência, iria influenciar (e influenciou) sua curta, mas marcante carreira musical, registrada a partir de seu primeiro disco La Llorona em 1997. Inclusive, após a turnê de seu álbum de estreia, a cantora se juntou a um circo na França. Na verdade, sua ida ao país teve uma outra motivação: Lhasa sentia que estava morrendo; e isso muitos anos antes de ser diagnosticada com a doença – confessou em entrevista à Roots World.
Após um hiato de seis anos sem gravar e, a esta altura conhecida como “cantora nômade”, lançou seu segundo álbum. Produzido por François Lalonde e Jean Massicotte via carimbo Audiogram, houve um cuidado para deixá-lo mais elaborado, complexo, incluindo guitarras, banjos, ukulele, órgão, sintetizador, trompete e mais uma infinidade de instrumentos; além de novas nuances melódicas, fazendo The Living Road soar como uma carroça na beira de uma estrada empoeirada, guiada por alguém que anseia pelo sentido do ir, do seguir em frente, sem deixar de observar o que está ao redor e dentro de si mesma, entre 12 canções em francês, inglês e espanhol.
Mesmo com toda essa variação, The Living Road é um álbum extremamente coeso, impedindo um destaque sequer; é daqueles maravilhosos discos que você coloca no play sem pular faixas.
De “Com toda palavra” a “Soon This Space Will Be Too Small”, embora “Anywhere On This Road” sintetize bem o álbum, já que fala sobre inquietude e desgosto; temas comuns durante seus quase 50 dramáticos minutos.
Ao som de passos e tilintar de estribos de cowboy, Lhasa começa:
“I live in this country now/I’m called by this name/I speak this language/It’s not quite the same/For no other reason/Than this it’s my home/And the places I used to be/Far from are gone”
(“Eu moro neste país agora/Eu sou chamada por este nome/Eu falo esta língua/Não é bem a mesma/Por nenhuma outra razão/Que esta é a minha casa/E os lugares que eu costumava ser/Estão muito longe, se foram”)
Claramente se referindo à sua identidade sem nação, o mote de Lhasa neste e nos seus outros dois álbuns seria o mesmo: o país que ela habita é circunstancial; logo, a palavra “lar” seria meramente subjetiva.
Naturalmente o ser humano por trás da artista – fazendo de conta que existe essa separação – estava mais interessada em vivenciar sua arte, e não necessariamente, fazer arte para viver. Naquele mesmo período de The Living Road, o produtor português Vasco Sacramento levou a cantora a Portugal, estabelecendo uma ligação além da música, e relembrou:
“Lhasa de Sela não estava interessada no estrelato, na fama ou no dinheiro. Não que quem aspire a isso seja menos válido. Longe disso! São ambições legítimas. Porém, Lhasa era diferente. Parecia que cantava apenas por imperativo de consciência, sem grandes preocupações com estratégia de mercado. Daí ter deixado apenas 3 álbuns. Após cada disco e respectivo show, Lhasa tinha necessidade de desaparecer por uns tempos para fazer coisas diferentes, por exemplo, a longa temporada que passou em Marselha onde as suas irmãs têm um circo”, contou ao Bodyspace em 2010.
Não há como descrever este clássico quase perdido sem comentar sobre Lhasa dentro e fora dos palcos. São coisas simplesmente indissociáveis. É a verdade de uma mulher que estabeleceu um novo parâmetro visual da vida nômade contemporânea, com suas letras de profundidade pessoal, musicada com uma delicadeza e afinco fora do usual. Sabe aquele cliché “foi-se a artista, mas fica seu legado”? Então, neste caso é bem real, e é também por isso que você precisa ouvir The Living Road.
The Living Info:
+ Lhasa de Sela morreu em sua casa em Montreal, no ano novo de 2010.
+ Lhasa decidiu que seria cantora pelo resto da vida após assistir um documentário sobre Billie Holiday. Ela tinha 13 anos.
+ No período em que esteve envolvida no circo/teatro na França, de Sela cantou na compania ‘La Maison Autre’, viajando sem parar com as irmãs. Foi também quando surgiram as composições de ‘The Living Road’.
+ ‘The Living Road’ foi nomeado como melhor “Culture Crossing” e “Álbum do Ano”, e apesar de não ter ganhado, a música ‘Anywhere On This Road’ apareceu na compilação em CD dos ganhadores do World Music Awards.
+ Em 2018 ‘The Living Road’ foi lançado pela primeira vez em vinil pela Audiogram/Sony Music; duplo e respeitando tanto a arte original da capa quanto do encarte.
Ouça The Living Road no Spotify: