O rock português nunca mais foi o mesmo após o surgimento destes seminais de Almada
Por Luiz Athayde
Provavelmente a frase mais cliché da história da humanidade, no âmbito musical é: “rock é liberdade”. Por mais brega que seja nos dias de hoje, ela ainda é real. Vide recente acontecimento no Irã, onde dois jovens foram presos por tocarem heavy metal, e pior: por muito pouco não foram sentenciados à morte.
Pois é, nem países europeus escaparam de regimes ditatoriais. Enquanto a Inglaterra borbulhava como lava de vulcão em sua fase de transição do rock progressivo para o punk rock e, consequentemente, o pós, nossos irmãos lusitanos ainda configuravam Portugal como uma nova nação, liberta do regime Salazarista, resultante da Revolução de Abril.
E nesse caldeirão sociopolítico surge, na Costa de Caparica, Almada, o UHF. Tendo como figura central o vocalista e guitarrista António Manuel Ribeiro, o embrião foi formado em 1976 como uma banda de covers chamada Purple Legion, circulando apenas por bailes locais. O grupo, que contava com um brasileiro, logo mudou de formação e alterou seu nome para À Flor da Pele, e em pouco tempo, enfim, para UHF.
“ ‘À Flor da Pele’ era um nome muito grande, psicodélico e distante do sentido dos tempos que se passavam a música naquele período (…)
Quando voltei para casa, o cabo da televisão preto e branco voltou a falhar, e ao mexer, parei por um segundo e tive a ideia [do nome] quando fixei as duas entradas na traseira do aparelho: VHF e UHF.”, disse Ribeiro ao explicar o nome definitivo da banda.
No começo de novembro de 1978 realizam o primeiro show como UHF, mas oficializam a data em sua segunda apresentação, no dia 18 do mesmo mês, abrindo para o seminal Aqui d’el-Rock, por ser a primeira vez do guitarrista e líder António cantando. A essa altura ele já era acompanhado por Carlos Peres (baixo) Américo Manuel (bateria) e Renato Gomes (guitarra).
Vale lembrar que, como em todo começo de banda, as coisas não eram fáceis. Além da escassez de lugares para tocar, o país ainda tinha remela nos olhos por acabar de acordar de uma enorme apatia social ocasionada por anos de isolamento. Culturalmente, especialmente a partir de 1974, as músicas predominantes na mídia eram as que tinham viés político. Como o rock era considerado apenas uma brincadeira de criança, quem não se enquadrasse nesse sistema, ficava à deriva – fator decisivo para o impedimento de bandas portuguesas emplacarem.
Pouco a pouco foram abrindo caminho, tocando sem parar e onde pudesse, chegando a abrir shows de Dr.Feelgood e Elvis Costello em 1979, ganhando reconhecimento por ser uma excelente banda ao vivo. Em 1980 começa uma leve abertura para o rock por parte das gravadoras, e a banda assina um contrato de 5 anos com a EMI. E de imediato, preparam seu primeiro single Cavalos de Corrida. Bom, isso depois de ficarem três meses na “geladeira”; fora que nesse meio tempo, Américo Manuel larga as baquetas, cedendo lugar a Zé Carvalho.
Apesar de contar com single quase pronto para soltar na praça, o “insight” se deu após a primeira ida do Ramones a Portugal, com direito a três apresentações no país, influenciando diretamente o som do UHF. Em outubro do mesmo ano, Cavalos de Corrida é lançado, e por ser uma música muito conhecida em seus shows, alcança facilmente o primeiro lugar em todo o país, tornando o UHF o bastião do rock português, que já contava com Xutos & Pontapés, GNR – favor não confundir com ‘aquela’ banda –, o sensacional Heróis do Mar, Street Kids e até mesmo António Variações, com sua abordagem mais new wave/synthpop (e também por ser um pioneiro), que adentrou no caldeirão.
O ano de 1981 chega e com ele, enfim, o álbum de estreia; e motivo do qual você precisa ouvir: À Flor da Pele. Sucesso imediato. A primeira faixa “Rua do Carmo” já mostra a pegada principal do grupo: direto, curto e grosso. Ganhou vídeo, com a banda circulado no meio da multidão da rua que nos dias de hoje poderia figurar tranquilamente qualquer parte da Glória – bairro comercial de Vila Velha, Espírito Santo, conhecido por suas inúmeras lojas, especialmente de roupas; trânsito caótico, aglomerações humanas e calor “asfaltal”. Ah, e o constante cheiro de chocolate vindo daquela fábrica vendida para a Nestlé, que inclusive é o que salva – ou avenida comercial mundo afora que se preze.
Outros hits saíram dali: “Modelo Fofográfico”, “Geraldine”, “Ébrios” e “Rapaz Caleidoscópio”, que se tornou um hino entre a juventude rebelde da época. Envolto a uma atmosfera que circula entre o punk e o pós, À Flor da Pele vai além do registro discográfico, é um documento histórico – e bem feito, diga-se, já que muitas coisas tidas como clássicas são bem toscas; seja na produção ou as músicas em si –, que regeu o chamado rock português como um movimento de renovação musical do país; o mais importante após a Revolução de Abril (ou 25 de Abril).
Muitas bandas portuguesas que ganharam a opinião pública e consequentemente os holofotes devem seu pontapé inicial a trupe de António Manuel Ribeiro por abrirem shows do UHF em seus dias iniciais. É um grupo que ao longo de sua discografia nunca abriu mão da sua língua materna, o que ajudou a se tornar um fenômeno exclusivamente local. Mas isso não impede de reverberar para outros mares, incluindo o Brasil – o punk e o rock nacional dos anos 80, aquela coisa de se rebelar também contra a estabelecida MPB, sabe? – por ser mais uma de tantas ‘transmissões’ contraculturais originadas pelos “nãos”.
À Flor da Info:
+ As primeiras 12.500 cópias de ‘À Flor da Pele’ incluem um single extra contendo as faixas “Quem irá beber comigo? (Desfigurado)” e “Noite Adentro”.
+ O single “Rua do Carmo” ficou mais de 30 semanas no top das mais pedidas das rádios portuguesas.
+ ‘À Flor da Pele’ foi premiado com disco de ouro.
+ O líder António Manuel Ribeiro era chamado de Jim Morrison português. Seu visual, rebeldia, estilo de vida “viva rápido, morra jovem” e jeito deveras solitário lhe renderam tal alcunha na época.
+ A causas nobres sempre estiveram na agenda da banda, debutando Portugal ao participar no 11º volume da edição Rock4Life International de 2009, uma compilação com renda voltada para causas filantrópicas. A faixa escolhida foi “Alguém (que há de chegar)”.
+ Em 2017 o UHF abriu para o Deep Purple em Lisboa, bem na época dos incêndios ocorridos em Portugal. A banda doou 10% do seu cachê para os Bombeiros Voluntários de Pedrógão Grande em favor das vítimas.
Ouça À Flor da Pele: