A longa espera por um álbum voltado para o jazz nunca valeu tão a pena
Por Luiz Athayde
Quem conhece a cantora (e muitas outras coisas) sueca Neneh Cherry por seus hits dance music, mal sabe, de uma maneira geral, de onde ela veio e, principalmente, o que ela aprontou depois.
Muito antes de Raw Like a Sushi (1989) Cherry fez escola no (pós) punk inglês. Passou por grupos como The Slits e Rip Rig + Panic, além de figurar projetos como o New Age Steppers, devidamente indicado no Você Precisa Ouvir.
Em 1996, ela marcou seu carimbo na década ao lançar o consistente Man. Registro esse mais voltado para o trip hop e com direito a parceria com cantor e compositor senegalês Youssou N’Dour, no hit pronto “7 Seconds”. Tocou nas rádios deste globo até dizer chega.
Nascida Neneh Mariann Karlsson em Estocolmo, no décimo dia de março, da classe de 64, ela é filha da artista plástica sueca Monika Karlsson com o músico serra-leonino Ahmandu Jah. No entanto, ainda pequena, viu seus pais se separarem, e tão logo adquiriu outro sobrenome, Cherry, de seu pai adotivo, o influente jazzista norte-americano Don Cherry.
Seu background punk se deu aos 15 anos, quando se mudou para Londres com os pais. Foi lá que ela se enturmou, mergulhando de vez no sempre efervescente caldeirão sônico britânico.
É provável que, como uma consequência natural ou revolta “inconsciente”, Neneh estava longe de se enveredar para o jazz, mas nunca é tarde para começar. E não foi: em 2012 ela veio com tudo ao fechar parceria com um trio sueco/norueguês com cerne na música de Don, inclusive no nome: The Thing; extraído da música homônima do álbum Where is Brooklyn?, de 1969.
O resultado? O sintomático The Cherry Thing. Chancelado pelo carimbo norueguês Smalltown Supersound, o registro teve produção assinada por Cameron McVey – ele mesmo: Portishead, Massive Attack e All Saints são apenas algumas de suas credenciais como produtor, além de ser marido da cantora – e Robert Harder.
São apenas 8 faixas, mas que soam como se fossem pouco mais da metade, dada a quantidade de kWh (quilowatt) sônico expelido em massa a cada faixa tocada.
Como muitos álbuns de jazz, esse também compõe uma série de versões, mesclado a músicas autorais. Porém, aqui há um diferencial: os artistas escolhidos para serem repaginados.
Mostrando a que vieram e também para não fazer feio perante o espírito de Don Cherry, o registro já abre com uma composição de Neneh, “Cashback”. Trata-se de uma quebradeira das mais nervosas; free jazz totalmente passional, a flor da pele e poros afins. Não há dúvidas que Don estaria orgulhoso da filha.
A primeira surpresa vem logo na segunda faixa. O Suicide de Alan Vega ganha uma interpretação ainda mais melódica, imponente e até mesmo sinistra de Neneh, em “Dream Baby Dream”. Este, um obscuro single de 1979 do ato eletrônico nova-iorquino.
Na sequência, conexão com o trip hop em una versão para “Too Tough to Die”, da cantora e compositora britânica Martina Topley-Bird. Ela é mais conhecida por figurar trabalhos e apresentações ao vivo do Massive Attack. Aqui, o destaque fica com a cozinha, beirando a violência propriamente dita com os instrumentos.
“Sudden Moment” é a segunda parcela autoral, agora assinada por Mats Gustafsson, uma das mentes criativas do The Thing. Há um certo charme torto, como se alguém estivesse todo sem jeito ao arriscar um flerte após meio copo de alguma bebida lixo em algum pub de quinta.
Essa faixa também conta, no bom sentido, com usos e abusos do sax, dando um ar até agonizante em alguns momentos. Sem mencionar Ingebrigt Håker Flaten (baixo) e Paal Nilssen-Love (bateria), que só sendo muito doidos (entrosado também é uma palavra que se encaixa nesse contexto) para segurar a onda de Gustafsson.
“Accordion” inaugura o lado b do long play simplesmente esmagando a versão original do rapper MF Doom, em um quase freestyle de pouco mais de 6 minutos. Logo em seguida, Don Cherry é revisitado em “Golden Heart”, faixa extraída de outro clássico discográfico, Complete Communion, lançado em 1966.
Dizer que a próxima música é um ponto alto pode me converter de suspeito a culpado. Basta ouvir “The Dirt”, do seminal The Stooges e engatar a leitura feita por Cherry e sua coisa; executada quase que fidedignamente como a original, não fosse o “Napalm Death” que o batera enfia no desfecho – você leu corretamente: “grind”, “blastbeat”, por aí.
Vale lembrar que antes de juntar os outros “patetas”, Iggy Pop viveu um curto período de sua vida andando com músicos de jazz e até esboçou tocar em banda. Segundo o próprio, o fracasso ao reproduzir o feeling desse gênero musical foi por ser branco.
Com classe absoluta, Neneh se volta ao etéreo, trazendo uma grande parcela de melancolia em “What Reason I Could Give”, do necessário Ornette Coleman, pisando no freio no momento certo para encerrar o registro.
Oito é um número mais que suficiente de motivos dos quais você precisa ouvir The Cherry Thing. E se for preciso um nono, diria que este disco também representa com maestria as possibilidades do free jazz como, redundantemente dizendo, “zona livre”. O lance é explorar terrenos até então improváveis, pelo simples fato de pertencer a outras esferas musicais.
Também, pudera: seria muito difícil alguém com DNA artístico tão visível, aliado a uma falange inspirada, construir algo fora do fantástico. Recomendado com todas as letras – independente de você, caro (a) escavador (a), ser ou não aficionado (a) com o universo jazzístico.
The Cherry Info:
+ Juntos os integrantes do The Thing contabilizam mais de 80 projetos e bandas no currículo; dentre elas está uma pequena discografia com assinatura da parceria entre Mats Gustafsson e o ex-Sonic Youth Thurston Moore.
+ Neneh Cherry é irmã por parte de pai de Eagle-Eye Cherry, conhecido pelo hit “Save Tonight”, lançado em 1997.
+ O primeiro show que Cherry assistiu e que mudou sua vida foi do Bad Brains, quando já residia em Londres.
+ A cantora começou a encontrar sua voz cantando com Poly Styrene (03/07/1957 – 25/04/2011), do X-Ray Spex.
+ Lançado em 18 de junho de 2012, The Cherry Thing alcançou o 16º lugar na parada jazz da Billboard.
Ouça The Cherry Thing no Spotify: