Música eletrônica francesa com os pés fincados no Oriente Médio
Por Fabio Martins
Às vezes o algoritmo do streaming acerta! Cá estava eu montando uma seleção de faixas em BPM mais lento pra gravar um DJ set pra postar no Mixcloud e, na esteira de “Hizbollah”, faixa do Ministry de 1988 com pegada “Oriente Médio” que usaria neste mix, o Spotify relacionou “Medahat”, do até então desconhecido (para mim) duo francês Acid Arab. O nome “esperto” e a capa do disco Musique de France (2016) me chamaram à atenção de imediato e lá fui eu mergulhar em mais uma pesquisa musical e correr atrás da mídia física!
Resumindo Musique de France: techno, dub/trip-hop, cânticos árabes, percussão e rap. Ou, melhor: música eletrônica francesa com os pés fincados no Oriente Médio. Mas esqueça o rótulo malfadado de “world music”, que apenas reflete apropriação cultural indébita. A parada aqui é PESADA, densa e relativamente sombria, numa simbiose perfeita entre dois universos distintos. Aqui, os mundos ocidental e oriental colidem para gerar uma sonoridade nova.
Pesquisando mais a fundo sobre o Acid Arab, descobri que o duo formado por Guido Minisky e Hervé Carvalho vinha tocando como residente do evento “Acid Arab” no club francês Chez Moune, e seus mixes com sons do Oriente Médio foram ganhando notoriedade no underground ao ponto de viabilizar uma viagem à Tunísia, acompanhados do DJ local Gilb`R, abrindo um leque de oportunidades.
Primeiro, foram lançadas duas compilações com artistas locais, e em seguida saiu Musique de France com um time incrível de músicos de diversas partes do Oriente Médio assumindo vocais, rimas, percussões e melodias. Se sua referência de “música eletrônica francesa” se resume ao Daft Punk e Air, esqueça. Como falei acima, a parada aqui é PESADA.
A abertura, com “Buzq Blues”, fez o chão tremer aqui com uma batida reta e implacável e loops de melodias árabes. Quase clichê, não fosse a sonoridade mais apocalíptica da faixa. “La Hafla” segue com batida reta e nervosa, porém permeada o tempo inteiro pelos vocais intensos de Sofiane Saidi, argelino responsável pela criação do gênero “oriental glam/rafi sound” (que passei a conhecer agora, risos). Corta para a já citada “Medehat” e temos uma espécie de trip-hop sombrio que soa como se tivesse sido produzido no deserto africano.
E isso é só o lado A do disco duplo, que segue revelando surpresas até o seu fim, a exemplo do sensacional “rap” (está além desse rótulo) de “Still” e sua batida grave e pesada acompanhada do palavreado do renomado músico turco Yıldız (que também assume uma espécie de cítara árabe na faixa) soando como numa miragem sombria no deserto.
Uma referência distante para situar o som do Acid Arab seria o Asian Dub Fundation, assim como o Fun-Da-Men-Tal, ambos representantes “étnicos” da música eletrônica dos 90`s. É um bom ponto de partida, mas a viagem aqui é mais profunda. A bem verdade é que o Acid Arab percorre um caminho inverso do histórico colonizador da França junto ao Norte da África. Aqui, a dupla francesa traz para o “primeiro mundo” uma rica e multifacetada cultura que, em tempos coloniais, era sufocada ou até mesmo aniquilada pela mão pesada do colonizador.
O que o Acid Arab fez, além de tudo, foi mostrar ao mundo que o Oriente Médio não se resume a sheiks do petróleo ou homens-bomba – aquela visão tacanha que nós, ocidentais, assumimos quase que por osmose –. Existe uma cena musical forte e original acontecendo na Tunísia, Turquia, Argélia, e tantos outros países mais, bem como na própria África como um todo. Uma cultura rica e que merece ser apreciada e, porque não, absorvida pelo mundo ocidental. Você precisa ouvir Musique de France.
Fabio Martins é jornalista de formação, DJ, produtor cultural, atualmente empreendedor pelo Digi.Lab – Laboratório Digital de Ideias, e sócio-fundador da Substance Party e do perfil @discolatras no Instagram.