Influências fora do limitado perímetro metálico originaram um dos discos mais originais do estilo
Por Luiz Athayde
Às vezes, um álbum é clássico por manter a essência do que foi feito em um determinado status quo sônico e colocar em outro patamar. Já outras, simplesmente por trazer algo totalmente novo, mas também palatável aos ouvidos.
O terceiro álbum da banda neerlandesa The Gathering se encaixa na segunda. Principalmente porque seus autores vêm da diminuta esfera metálica, onde “nem tudo pode”.
Em teoria. Mandylion saiu neste exato dia, em 1995. Ano que muita gente do chamado ‘metal extremo’ passava por uma fase de experimentações – Moonspell, Tiamat, Samael, Rotting Christ, Paradise Lost, dentre outros.
E muito disso se deve aos métodos de gravação, produção e mixagem feitos no Woodhouse Studios em Hagen, Alemanha. Neste caso, realizados entre 1 e 16 de junho daquele ano, usando um gravador analógico de 24 canais. No comando, Waldemar Sorychta e Siggi Bemm, dupla que merece um artigo à parte, dada sua massiva contribuição, especialmente na década de 90.
No caso do Gathering, é um processo que vinha acontecendo, ainda que de maneira rudimentar, desde o debut, Always… (1992), seguido pelo estranho Almost a Dance (1993). Naquela altura já poderiam ser chamados de alternativos inclusive pelo visual – raramente usando roupas pretas.
Entretando, houveram mudanças significativas. Como o line-up: saem os vocalistas (que de fato nunca foram efetivados) Niels Duffhues e Martine van Loon, entra Anneke van Giersbergen.
Com ela, seguiram os irmãos René e Hans Rutten (guitarra e bateria respectivamente), Jelmer Wiesma (guitarra), Frank Boeijen (teclado) e Hugo Prinsen Geerligs (baixo).
A outra, claro, foi a música. Gothic Metal pode até ser a etiqueta mais usada. Porém, até hoje, não há nada similar. Resultado das variadas influências que regeram as oito faixas presentes do disco; literatura de fantasia, ficção científica, música étnica e mais. Vide o primeiro single, “Strange Machines”, editado em novembro daquele ano.
“Na ponte dessa música, usamos um fragmento de áudio do filme “The Time Machine” (1960), baseado no clássico romance de ficção científica de H.G. Wells (1895)” escreveu a banda.
Então comemorando o 25º aniversário de Mandylion, o The Gathering revelou uma série de curiosidades e detalhes envolvendo aquele período:
“Como a maioria de vocês sabe, essa música é sobre viagem no tempo. Embora o verso e o refrão de Strange Machines sejam bastante lentos, as versões demo que gravamos anteriormente eram ainda mais lentas. Depois de tocar a música ao vivo algumas vezes em 1994, percebemos que era melhor tocá-la mais rápido. E foi assim que ela apareceu no álbum.”
Um dos momentos mais marcantes do registro, bem como de toda a discografia do grupo, se chama “Eléanor”, mais um caso de canção influenciada pela sétima arte. Sobre a composição, a banda comentou que “é a música mais pesada do disco”.
E continuam: “Muitas vezes, compomos depois de assistirmos a um filme. Todos nós tentávamos imaginar uma música que se encaixasse num filme específico que havia nos tocado. A Lista de Schindler (1993) foi uma grande inspiração para a música de Eléanor, por causa do tema e das cenas pesadas. É a única música do álbum que apresenta bumbo duplo.”
Mas e o papel de Anneke na estreia como vocalista da banda? É sabido que todas as letras são de sua autoria, mas o restante do grupo já se encontrava em plena atividade.
“Quando Anneke entrou para a banda em 1994, já estávamos trabalhando em várias músicas (do Mandylion). A primeira demo que gravamos com Anneke foi uma versão de “In Motion #1″”.
É onde também revelam o que mais tocava nas suas caixas de som:
“Essa versão demo acabou sendo incluída no ‘DSFA 6’ (CD de compilação de bandas de metal underground holandesas) em 1994. E, mais tarde, na edição especial de luxo do Mandylion (2005). A versão demo, que tem um clima mais quente e menos metal do que a versão do Mandylion, foi gravada no Beaufort Studio (o mesmo estúdio de ‘Always…’).
Nos anos 90, ouvíamos muito bandas como Slowdive e Dead Can Dance. Você pode notar claramente essas influências em Mandylion, especialmente em ‘In Motion #1’.”
“Fear the Sea” é uma canção mais lado b, gerada de uma ideia básica do guitarrista Jelmer Wiersma. Ela apresenta um tema interessante e, digamos, bem neerlandês. O grupo comenta:
“A música é diferente do resto do álbum. Os riffs de guitarra são mais “ondulados/alternativos” e tem uma ponte um tanto “trippy/espacial”. Quando a ouvimos hoje, ela parece engenhosa em termos de arranjo. Há muitas atmosferas diferentes para descobrir e muitas mudanças de andamento.
Em termos de letra, ela também é diferente do resto do álbum. A maioria das músicas de “Mandylion” trata de perda e partida, enquanto “Fear the sea” aborda um tema “terreno”: o medo da água. Um fenômeno bem conhecido na Holanda, que fica abaixo do nível do mar em quase um terço do país. Um grande desafio também com a atual mudança climática e o aumento do nível do mar.”
Certamente, o momento mais World Music do álbum se mostra na faixa-título. Mas sua ideia discorre um pouco além de uma cópia não autenticada das composições de Brendan Perry e Lisa Gerrard. Há também aquele quê de cinema.
“Quando René gravou as partes da flauta [que parece ser turca], usamos um microfone tão sensível que era possível ouvir seus sapatos quando ele se movia. Ele teve que tirar suas botas militares (daí as meias) para que pudéssemos continuar a gravação.
“É possível ouvir claramente as influências do Dead Can Dance nessa música, que foi escrita por René e Frank. Na verdade, ela foi composta originalmente para um projeto paralelo em que René e Frank estavam envolvidos, chamado ‘Diep Triest’ (holandês para ‘Muito Triste’). Todos nós gostamos tanto da música que ela acabou entrando em “Mandylion”.”
Curiosamente, a banda aponta a importância de ter um registro diversificado: “Achamos que seria bom para o álbum ter uma música relaxante e semi-instrumental depois de todas aquelas guitarras pesadas.”
Ao longo dos anos, o The Gathering também passou a ser constantemente associado ao rock progressivo. Não somente em função de algumas canções longas, mas por flertar com nuances espaciais e psicodélicas, tão comuns a esse estilo. Embora tenha uma cerne doom metal, a faixa seguinte se encaixa perfeitamente nesse quesito.
Eis a explicação: “’Sand and Mercury’ foi baseada em três músicas que tínhamos e que juntamos em uma única canção. O final da faixa apresenta uma gravação de J.R.R. Tolkien que fala sobre a morte e recita uma fala de Simone de Beauvoir, que ele relaciona com (a essência de) The Lord Of The Rings.”
A citação: “Não existe morte natural. Nada do que acontece com o homem é natural, pois sua presença coloca o mundo inteiro em questão. Todos os homens devem morrer, mas para cada homem sua morte é um acidente. E mesmo que ele saiba e consinta com isso, é uma violação injustificável.
Bem, você pode concordar com as palavras ou não, mas essas são os pontos-chave de O Senhor dos Anéis”.
Concluindo, o grupo comenta que “essas palavras, ditas por um escritor que todos nós apreciamos muito, combinam muito bem com a letra da música; elas tratam de passagem e despedida.”
Mandylion tem desfecho com “In Motion #2”, uma faixa feita com o mesmo compasso que a primeira parte (6/8) para endossar sua conexão. “Foi a última música que escrevemos para o álbum e sentimos que era uma boa música para encerrá-lo também.”
Reparou que “Leaves” não foi mencionada? Pois bem, se ouvir o álbum atentamente, irá notar que há elementos que culminariam no Nighttime Birds (1997). Não à toa, ela se configura como um single de transição com a fantástica “Adrenaline”, lançada em 1996. Inclusive, nesse mesmo registro consta a música “Third Chance”, faixa 6 do disco posterior.
Nas paradas: vigésimo lugar em casa no ano de 1995, logo na primeira semana de lançamento. No âmbito dos licenciamentos, prensagens europeia (CD, LP) e norte-americana (CD, cassete) em 1995 (CD), japonês em 1996 (CD), e no Brasil (CD) somente no ano de 2005. Todos via carimbo Century Media.