Formação de Sorocaba apresenta seu primeiro álbum inteiramente em português
Por Luiz Athayde
Sabe aquela claridade que aponta o início da manhã, antes do nascer do Sol? Então. Se chama Aurora. Mas ainda entre algumas nuvens, é também como se denomina o mais novo álbum de estúdio da banda Wry.
Pois é. Pense num registro gerado em um Zeitgeist para lá de esquisito. Sem mencionar a pandemia da Covid-19, que jogou no lixo nosso “direito” de ir e vir, ao menos no período que boa parte de nós estivemos em quarentena. Não dava para soltar um disco feliz.
Mas também não quer dizer que Mario Bross (voz, guitarra, sintetizadores), Luciano Marcello (guitarra, backing vocals), William Leonotti (baixo, backing vocals) e Italo Ribeiro (bateria) se tornaram felizes-tristes como Robert Smith e companhia. Exceto pelo flerte sonoro. Na verdade, a palavra que define este novo registro, como eles mesmos já revelaram é: desconfiança.
O amanhecer do grupo de Sorocaba, São Paulo, veio em 11 feixes de luz em diferentes graus de visibilidade (lembrar das nuvens), regidos por um constante clima pós-punk – embora rotulá-los apenas como tal seja algo simplório –, com melodias em alguns momentos absurdamente cativantes, e sobretudo grandes letras. Em português. Algo ainda desafiador na esfera alternativa.
Para o sucessor de Reviver, de 2021, a banda contou com alguns nomes que ajudaram fazer a diferença. Estevam Neto (Geztalt) foi um desses, ao comandar os sintetizadores e samples nas faixas 3, 4, 6, 7, 9, 10 e 11. E Rái Mein, que assina a flertada dos caras com o Ultravox, aqui intitulada “Coração Sem Educação”.
A produção é de Mario Bross e João Antunes, que também assina a mixagem e masterização, bem como o trabalho de gravação; feita no estúdio Deaf Haus, em Sorocaba, ao lado de Luciano Marcello. Ainda: William Leonotti como assistente de estúdio e gravação, e Marcel Marques na assistência adicional. Tudo sob direção de Mario.
As duas primeiras faixas “Sem Medo de Mudar” e “Contramão”, também serviram para apresentar o álbum antes de seu lançamento, denotando o clima de desabafo, inquietação; uma direta como um raio, e a outra tão janglin’ quanto The Byrds, mas com o mesmo dinamismo de uma partida de basquete das mais quentes. Não ao acaso, a mesma ganhou um videoclipe sensacional filmado com a rapaziada do Basquetinho Rasgado, do quintal de casa.
Na sequência vem “Carta às Moscas” no típico indie rock dos anos 2000, e uma sombra de dúvidas ante a pandemia e seu distanciamento social endossado pelas facilidades do mundo virtual. Em “Quero Dizer Adeus”, posso apostar que nem de longe foi intencional, mas é assim que o Simple Minds soaria se cantasse no nosso idioma.
“Não Posso Respirar” traz o inevitável tema do confinamento, provocando o ouvinte a refletir sobre saúde mental. A pegada aqui segue rápida, marca mais que registrada do quarteto. Na “Labirinto Mental” rola uma espécie de reggae atmosférico, dreampop esfumaçado, em mais um tema envolvendo a mente. O bate-papo entre a cozinha principal e os sintetizadores realmente te envolve.
Já em “Temos Um Inimigo”, só faltou dar nome aos bois. Ou ao boi mor, prestes a deixar o pasto com um legado sem precedentes de ódio e pós-verdades. Seu viés é radiofônico, mas também um convite à festas no próximo triplex vermelho, virando à esquerda. “Pra Onde Eu Vou” dá uma pisada no freio, mas é balanceada pelo seu desfecho pesado e cativante. Esperança é a máxima por esses lados.
“Universo Jogador” traz aquela coisa inglesa do tempo que o shoegaze buscava ares mais etéreos. Viajante do começo ao fim. Conexões com Ride, My Bloody Valentine, Chapterhouse e correligionários. O lado mais punk aparece em “Coração Sem Educação”, conversando sem a menor timidez com Midge Ure e sua trupe londrina. O encerramento se dá com a DR (gíria para ‘discutir a relação’) “Vivendo No Espelho”; indie encontra o ska two tone enquanto a banda tenta uma saída.
Um dos méritos do disco é mostrar um grupo extremamente coeso e convicto na sua proposta de sair da zona de conforto. Boa parte da carreira dos sorocabanos foi voltada para o mercado internacional; de residência em Londres a incontáveis giros pela Europa e Reino Unido, incluindo clubes pequenos e festivais de renome como o Primavera Sound em Barcelona.
O outro, é o atestado de sobrevivência mesmo. “Quando estávamos pensando no título, a gente analisou as letras, uma a uma, e vimos que tinha um fio de esperança reacendendo no que estávamos propondo com cada faixa”, disse o vocalista Mario Bross.
E acrescenta: “Juntando isso com a época em que o disco seria lançado, em plena eleição presidencial brasileira, não poderíamos pensar em outro senão ‘Aurora’, o que pra gente soou perfeito.”
Em suma, Aurora é a fotografia atualizada de uma banda que é excelência no que faz, com boas horas extras contabilizadas na falta de reconhecimento como um dos seminais do rock brasileiro.
Ouça o álbum na íntegra abaixo:
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