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Você Precisa Ouvir: Soda Stereo – Doble Vida (1988)

Quarto gol de placa dessa seleção que marcou história na música argentina

Por Luiz Athayde

Devo confessar para “ustedes” que foi difícil escolher apenas um álbum para essa sessão – embora nada impeça que outros venham. Especialmente de uma banda que tanto se reinventou enquanto ativa. Verdade, lá se vai mais um ano desde o último show dos argentinos do Soda Stereo.  

Infelizmente, não foi só isso. Em 2010, o vocalista, guitarrista e líder Gustavo Cerati sofreu um AVC (Acidente Vascular Cerebral), e após quatro anos em coma, veio a falecer aos 55 anos de idade, juntamente com as esperanças de um retorno aos palcos. Mas, até o fatídico dia, muito desse refrigerante estéreo foi consumido.

Em dezembro de 1980, o The Police pisou pela primeira vez na Argentina, e lá estava o embrião que dois anos depois formaria o Soda Stereo. Com influências do próprio e também de The Cure, os amigos Gustavo Cerati (vocais/guitarras), Héctor ‘Zeta’ Bosio (baixo, vocais) e o batera Charly Alberti se juntaram para logo rodar pelo circuito alternativo local.

Os voos se tornaram mais altos ao lançarem o autointitulado debut em 1984. A banda definitivamente entrou no ritmo das turnês e logo dominou estádios. Isso ao mesmo tempo que se mostrava ativa nas produções discográficas. Já em 1988, com a carreira em pleno estado de ascensão, lançam Doble Vida.

Soda Stereo em 1988 (Foto: Divulgação)

Como uma espécie de progressão natural do que fizeram em Signos (1986), Doble Vida foi gravado em Nova Iorque. O cuidado com a produção foi maior, inclusive na escolha dos que iriam comandar o botões no estúdio, especialmente por ser alguém de fora da banda.

O escolhido foi o porto riquenho Carlos Alomar, que havia tocado/gravado com David Bowie (de 1975 a 2002, incluindo a ‘Trilogia de Berlin’), Iggy Pop (The Idiot’ e ‘Lust For Life’, ambos de 1977), Mick Jagger (‘She’s a Boss’, lançado em 1985), e Paul McCartney (em ‘Press to Pray’, editado em 1986). Apenas.

Na época, o saudoso líder revelou o motivo da escolha do local de gravação (via FlacoStereo): “Não fomos a um desses estúdios considerados “os mais brilhantes de Nova York”, mas a um de alta qualidade, onde já passou gente de um estilo que não é o top 40, como Iggy Pop, Suzanne Vega, Scritti Politti ou Tom Verlaine.”

Cerati continua, dizendo que “não era um lugar asséptico como a Power Station, mas um pouco mais underground e com pessoas de alto nível. Era um lugar muito mágico, localizado no coração de Chinatown.”

Ele acrescenta rasgando elogios a todos os envolvidos: “Alomar, os assistentes e até mesmo o dono do estúdio eram fanáticos [por nossa música] e estavam jogando no nosso time, e isso não tem preço. As pessoas eram muito calorosas e nos sentimos em casa.”

Bosio, por sua vez, revelou surpresa no método de gravação: “No primeiro dia, achamos que íamos gravar a bateria e colocar alguns vocais de referência, mas não, Alomar nos disse que tocaríamos todos juntos. Deixar tudo gravado foi uma ideia muito legal porque o resultado possui coisas muito particulares.”

O ambiente em estúdio, justamente por ser integralmente de trabalho, é iminentemente estressante. No entanto, o baterista Charly Alberti destacou a personalidade do músico porto-riquenho:

“Quando você produz seu próprio álbum, você tem que estar a par de tudo, duvidando o tempo todo. Por outro lado, você tem menos pressão e, se tiver alguma paranoia, o produtor lhe diz que está tudo bem e você fica mais relaxado. Você ia, tocava, gravava e pronto. Mesmo nos dias em que estava cansado, Carlos entrava e te fazia rir e o deixava de bom humor.”

Esse clima positivo contribuiu para o resultado final, composto por nove faixas. Aliás, as mesmas se mostravam bem distantes das influências de Ska da era inicial e mais próximos do Sophisti-Pop. Uma espécie de zona de transição, por isso o caráter único do registro.

Músicas como “Picnic en el 4 B”, “Los Languis” e “Dia Común – Doble Vida” revelam aquela sonoridade que comandou as rádios na segunda metade da década de 80 – The Style Council e Fine Young Cannibals já o faziam com maestria, citando alguns exemplos.

A ditadura que dominou o país entre 1966 e 1983 não foi esquecida dos temas do álbum. Não à toa, “Corazón Delator” se tornou um hit natural em vários países latino-americanos que também sofreram com regimes ditatoriais.

Já a veia pós-punk do trio vem com força total na fantásica “En La Ciudad de la Furia”; menção à caótica Buenos Aires e suas consequências pelo status de cidade grande. E furiosa. O single recebeu uma grande produção em vídeo, sendo elegido o melhor videoclipe de rock argentino pela Rolling Stone.

Sem medo de inovar, a atmosférica “En El Borde” revela o lado ‘rapper’ de Zeta Bosio, mesmo que na brincadeira. No fechamento, uma sarrada básica em John Lennon com “Terapia de Amor Intensiva”, mas sem apagar o brilho do álbum.  


É curioso como ainda nos dias de hoje o Soda Stereo soa como uma “marca de refrigerante desconhecida” em terras brasileiras. Nem mesmo sua volta aos holofotes após um longo hiato, com ingressos esgotadíssimos pela América Latina em 2007, ressoou por esses lados.

O mais próximo que provamos desse refri foi a versão de “De Musica Ligera” (do álbum seguinte, ‘Canción Animal’, 1990) feita pelo Capital Inicial, convertida em “À Sua Maneira”, para o álbum Rosas e Vinho Tinto (2002).

Também teve Os Paralamas do Sucesso reinterpretando “Cuando Pase El Temblor” (do álbum ‘Nada Personal’, de 1985), lançada em 2017 no álbum Sinais do Sim. Nesse caso, nenhuma surpresa, já que a turma de Herbert Vianna sempre fez muito sucesso na Argentina.

Para piorar a situação, em entrevista concedida ao canal do jornalista e crítico musical Régis Tadeu no Youtube, o ex-VJ da MTV Gastão Moreira revelou um projeto que foi engavetado por problemas internos dentro da emissora. O mesmo consistia em um programa voltado exclusivamente para bandas latinas, do qual, o Soda Stereo certamente estaria incluído.

Aí fica a pergunta: será mesmo que tudo que não soa em português ou inglês como estamos acostumados é ruim? Ou, na verdade, foi a barreira musical criada entre o Brasil e os países vizinhos oriunda da mesma indústria que nos programou para absorver o pop travestido de latino, mas voltado para o mercado norte-americano na virada dos anos 2000?

Com esta deixa digo que você precisa ouvir Doble Vida pela chance de começar a derrubar esse muro através de uma banda que merecia emplacar vários gols no Brasil, mas sequer bateu na trave.

Resultado da sólida preguiça de dominância mercadológica causada nos consumidores de música, mais a paradoxal facilidade em adquirir informação, aumentando ainda mais a zona de conforto. É isso. Gracias totales!

Ouça Doble Vida na íntegra:

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