A história do gótico em uma novela musicada em 16 importantes capítulos… ou “4 temporadas“
Por Luiz Athayde
Existem bandas e artistas que possuem uma capacidade ímpar de ganhar tempo lançado compilações seminais nas entressafras de seus álbuns de estúdio. Não apenas em função da seleção das faixas, mas pela qualidade em si – nem tudo é ‘hit’ nos ‘greatest’ lançados.
E uma seleta ainda mais fechada consegue fazer suas coletâneas parecerem álbuns de inéditas. Vide The Smiths, com Hatful of Hollow (1984), e Morrissey em seu sortido Bona Drag (1990).
Mas, um grupo se destaca por ter ultrapassado essa fronteira adentrando em um terreno mais danoso e, ainda assim, obtido êxito: Love Like Blood.
Pior que apanhados de faixas sem nenhum atrativo são os álbuns de covers. A quantidade de bandas que lançaram mão desse artifício e tiveram seus discos largados no ostracismo não cabe no gibi. No entanto, o sétimo e até então último disco da banda formada em 1989, na cidade alemã de Geislingen é, até hoje, lembrado por muitos como um de seus melhores trabalhos.
Chronology of a Love-Affair é uma novela musicada em 16 partes, onde o gótico é o protagonista e os personagens reais são os grupos que serviram de base para moldar o caráter musical dos irmãos Yorck (vocais) e Gunnar Eysel (baixo, teclado, sampling). Assim como de Timo Deininger (guitarras), Alexander Schädler (guitarras) e Alex Sauer (bateria).
Gravado no House of Music Studios em Winterbach, Alemanha, o disco teve natural envolvimento direto dos Eysel. Gunnar assinou a produção e também meteu o dedo nas mixagens juntamente com Yorck mais o engenheiro de som Achim Köhler.
Se trata de versões com gênese em 1980 e encerramento no ano 2000, dividido em 4 “temporadas”: 1980-1985, 1986-1990, 1991-1995 e 1996-2000.
Sob esse conceito, houve um cuidado nos arranjos que rendeu uma atmosfera totalmente particular, para não dizer “autoral”. O álbum soa como se fosse uma extensão natural do que vinham fazendo no excelente Enslaved + Condemned, de 2000.
Abertura mais digna, impossível. “Decades”, do Joy Division, introduz um canto gregoriano antes do dueto feito por Yorck e a vocalista Olimpia S. Casa, que inclusive comandam o restante da canção aliada a um novo arranjo para a bateria.
Exceto pelo groove, “She’s in Parties” (Bauhaus) não sofreu grandes alterações, se garantindo como uma das mais diretas do disco. Mais ou menos a mesma linha seguida em “A Strange Day”, do The Cure, mas sob mote ainda mais soturno.
A segunda parte da novela gótica já chega metendo o pé nos seminais do deathrock, Christian Death, em uma empolgante versão para “Church of no Return”. Logo depois, engatam com a pesada “Wasteland” do The Mission.
Partindo para o lado mais melódico, os alemães anunciam a chuva com um dos maiores clássicos do The Cult, “Rain”, e encerram com um céu vagamente limpo em “April Skies”, do The Jesus And Mary Chain.
A década de 90 chega, e com ela os sintomas do estado das coisas. A redonda “Love Under Will”, do Fields Of The Nephilim, na verdade abre espaço para os próprios, na autoral “Injustice”, disparado uma das melhores canções de toda a discografia do Love Like Blood.
Mas é na música que deu o nome do grupo que está o brilho. “Love Like Blood” vem com todos os ventos trazidos pelo Killing Joke, mas a temperaturas consideravelmente baixas. Aliás, Jaz Coleman provavelmente ficou orgulhoso com a nova roupagem feita pelos alemães. De longe, é a versão mais densa do álbum
A partir daí (algumas), faixas que não necessariamente se esperavam em uma seleta gótica, até você perceber que tais bandas estão em boas mãos.
Entre o fim dos anos 1990 e começo dos 2000, os ingleses do Paradise Lost estiveram mergulhados em águas turvas que envolviam gótico, synthpop e o rock alternativo. Porém, foi uma faixa da era doom que os alemães escolheram para documentar a trama. “True Belief” é tão arrastada quanto a original, mas com um upgrade dark que só os Eysel poderiam fazer.
Já na última temporada, “Copycat” foi outra com uma roupagem completamente diferente. Ao contrário da rispidez da banda de Tilo Wolff, a releitura para essa grande música do Lacrimosa tomou ares mais singulares.
Na sequência, “Black Nº.1”. Quem conhece a obra do Type O Negative sabe que, por ser uma banda única, esboçar qualquer sinal de versão é uma tarefa bem arriscada. Ainda assim, o grupo se saiu bem, tendo em vista que o objetivo aqui desde o início era fazer uma leitura pessoal das bandas homenageadas.
Talvez a grande surpresa tenha sido “Whatever That Hurts”, do Tiamat, mesmo no fundo sendo algo óbvio. Em tempo: a psicodelia é uma influência comum entre as duas bandas; basta ouvir Wildhoney (1994), dos suecos e a seleta Swordlilies (1997), do ato alemão.
É também por esses lados que a banda deixa evidente seu lado slow motion. Em contrapartida, encerram com a alternativa “Great Big White World”, de um dos artistas do mainstream que mais trocaram ideia com a estética e a bizarrice do dark, Marilyn Manson.
Você precisa ouvir Chronology of a Love-Affair por ser um registro quase antropológico. Além de figurar um retrato da cena gótica no começo dos anos 2000: com os medalhões Peter Murphy, The Mission, The Sisters of Mercy e The Cure – este último imune a movimentos graças a sua diversidade – se virando como podiam.
Mas também vale para os que não aconteceram e agonizaram em alguma sarjeta underground, até ressurgirem, ainda imundos, a partir de 2010 com relançamentos e shows comemorativos. Embora mais importante mesmo seja a deliciosa escada para te levar aos compositores originais, caso não os conheça.
Cronologia da Informação:
+ A banda esteve ativa entre os anos 1989 e 2001, e fez uma única aparição em 1999, no festival Wave-Gotik-Treffen em Leipzig, e outra no dia 23 de julho de 2011 em Kortrijk, Bélgica. Desde então, encontram-se em um hiato indefinido.
+ Versões feitas como as do álbum ‘Chronology of a Love-Affair’ não são algo inédito no Love Like Blood. Em 1993, a banda lançou um Split single com o The Merlons of Nehemiah onde tocam “Heroes” (David Bowie), e em 2000, no álbum ‘Enslaved + Condemned’ , reimaginaram o megahit “Seven Seconds”, de Youssou N’Dour & Neneh Cherry.
+ ‘Chronology of a Love-Affair’ teve licenciamento via carimbo Hall Of Sermon em somente três países: Suiça, Russia, China e Brasil, que saiu pela Hellion Records.
Ouça Chronology of a Love-Affair na íntegra abaixo: