Embalsamados em referências literárias, Ciro Pessoa criou um dos maiores clássicos do gótico brasileiro
Por Dienes Fraga
Vamos hoje aqui falar sobre uma banda paulistana formada inicialmente por Edgard Scandurra (Ira!), Sandra (Mercenárias) e Charles Gavin (Titãs) e Ciro Pessoa (Titãs), como uma “super banda” que teria proeminências mais à new ave a priori, pelo que se tem de referências dessa época. Depois de muitas discussões e possíveis “traições” musicais, Entraram para o time Anna Ruth dos Santos e Marinella Setti que eram da banda Akira S e as Garotas Que Erraram.
Aqui começa a história do disco Fósforos de Oxford. Produzido na RPM Discos e pelas mãos do importante músico Luiz Schiavon. O disco abre com a faixa “Pânico e Solidão”, uma valsa com uma introdução convidativa, e um baixo marcado pela forma icônica que o Joy Division imprimia em seu primeiro disco. Os elementos vão se encaixando de forma organizada e hierárquica. Quando o teclado encontra seu momento ápice na música, a guitarra costuma parar. E é assim com todos os instrumentos e em várias faixas. A letra é inspirada no romance As aventuras de Arthur Gordon Pym do escritor Edgar Allan Poe. Aqui a crise da existência representado pelo desamparo da solidão chega a ser claustrofóbico se usarmos os elementos da música em termos figurativos.
A música seguinte é “Lapso de Tempo”. A apreensão com a condução do tempo é presente em quase todo o disco. Pequenos “arranhões de guitarra” e umas cordas simuladas em um timbre de teclado bem típico das bandas inglesas desse período. O que às vezes deixou o album com um ar extremamente sombrio foram esses entrelaços decaídos urbanos com a literatura francesa de Charles Baudelaire e sua literatura simbolista e desafiadora do século XIX.
“Anos” é uma indagação de apenas uma frase: “Anos… O que eu não tenho feito todos esses anos…”. Se na faixa anterior a janela pode remeter a pintura: Mulher na janela, de Salvador Dali, os devaneios procrastinadores e promessas de melhora, aqui se exclamam gritos quase primais da ansiedade como fenômeno psicopatológico. O solo de teclado que serviria como um alívio sonoro é ainda mais apreensivo em sua melodia.
Em “Jardim das Gueixas”, apesar da guitarra de introdução prometer um heavy metal daqueles, o baixo e o teclado te convidam a ficar nessa atmosfera em preto e branco, cheia de devaneios e dúvidas. A letra mesmo com um cambiante surrealista tem um lenitivo quase budista. Culminando numa atmosfera misteriosa e multicultural.
“A Queda do Solar de Usher” nos leva, pelo título, a mais uma referência a um conto de Edgar Allan Poe. Em parte de uma entrevista concedida ao canal Vitrola Verde, Ciro disse que houve uma sincronia com a banda Cocteau Twins sem mesmo ter escutado a banda. Não é de se duvidar… Uma valsa fantasmagórica e totalmente instrumental com vocalizações e um belo dedilhado de guitarra.
“Lágrimas” se destaca dentro do repertório: Tem uma linha de baixo parecida com a da música “Que País é Esse”, da banda Legião Urbana – sincronia paralela. A faixa mais dançante e nervosa do disco.
Outro instrumental que temos é “Opus 2”. Com o mesmo compasso de 6/8 usado em outras músicas e adjacente às melodias que remetem ao imaginário, delirante, incógnito e assombroso.
Tão perto é uma faixa que tem Fernando Deluqui (RPM) fazendo uma participação na guitarra, outro grito pós-punk lembrando Siouxsie And The Banshees com uma letra quase casta de acepção, mas que estranhamente funciona.
“Soldados” é a faixa que por vezes é a menos citada, não deixa o disco desinteressante e cumpre seu papel dentro da proposta mesmo sendo um ponto menor.
“Neste Deserto” talvez seja o grande clássico; letra declamada, o mesmo clima pós-punk urbano e essa pompa poética erudita que tinha tudo para ser gougre, mas que antecipou em alguns bons anos algumas das junções que se tornariam cliché no universo gótico dos anos noventa.
E essa viagem sonora termina com outro instrumental de harmonia que estaria em perfeita simultaneidade com o oriente médio. Tocada em uma escala harmonica e terminando a viagem deste navil desgovernado, solitário e muitas vezes inspirador.
Aqui temos uma perola underground perdida. Consternada, rejeitada pelo seu próprio criador enquanto estrutura estética, mas que pode surpreender quem se sente imergido em seus próprios questionamentos e que se beneficia de artistas ou obras que se mostram assim. Em um país como o Brasil é de um grande orgulho ter um disco, sim, gótico! Onde caminhamos por entre nossos coqueiros para venerar nossos poucos dias nublados… E é por isso que você precisa ouvir Fósforos de Oxford.
Ouça o álbum completo: