Em entrevista para a Folha, o compositor de criação mineira revela seu desgosto pelo atual cenário musical nacional
Por Luiz Athayde
Comentar a importância de Milton Nascimento para a música brasileira é chover no molhado. No alto dos seus 76 anos de idade, uma discografia de dar inveja inclusive aos seus contemporâneos, não somente pela quantidade, mas pela extrema qualidade e influência que exerceu e exerce até os dias de hoje, independente da época que seus discos foram gravados. Minas (1975), Geraes (1976) e Clube da Esquina (1972), fruto de uma parceria de luxo com Lô Borges, são apenas alguns registros discográficos que figuram a cabeceira de inúmeros artistas nacionais e mesmo estrangeiros.
Ciente da sua importância como artista, o cantor e compositor carioca de berço e mineiro de coração contou, em recente entrevista para a Folha de São Paulo, seu desgosto com o Zeitgeist musical brasileiro, onde a máxima, especialmente nas letras, parece ser a “sofrência”, mesmo que de modo sofisticado.
“A música brasileira tá uma merda. As letras então. Meu Deus do céu. Uma porcaria. Não sei se o pessoal ficou mais burro, se não tem vontade [de cantar] sobre amizade ou algo que seja. Só sabem falar de bebida e a namorada que traiu. Ou o namorado que traiu. Sempre traição.”, disse.
Para Milton, a cerne de sua bronca se dá pelo fato de que nem a tensão política parece atiçar a criatividade artística dos músicos de hoje, embora ele cite algunas exceções, como Tiago Iorc, Maria Gadú e Crioulo, embora este último “não seja tão novo”.
“ “Não sei por quê [o cancioneiro nacional está ruim]. Mesmo com a ditadura [1964-1985], o pessoal não deixava de falar as coisas. Ou [os censores] não deixavam ou a gente escrevia [músicas] e eles entendiam errado. Mas ninguém deixou de escrever. Hoje que está de novo quase uma ditadura, o povo não está sabendo escrever.”, disse.
Por outro lado, o coautor de “Coração de Estudante”, hino das Diretas Já na metade da década de 80 evita falar sobre política nos dias de hoje. “Só [digo] que eu não estou achando nada legal ultimamente”, disse Milton, que não votou na última eleição.
Mas nem tudo são os outros, Milton também contou um episódio de ira protagonizada por Miles Davis em show do jazzista em Nice, França. “Eu fui ver um show dele [Miles] em Nice. Os músicos quiseram ir falar com ele. Eu disse: ‘Não vou porque ele não gosta de mim’. Mas eles insistiram. Pra não ficar mal no lance, topei. Quando chegamos no camarim, o Miles expulsou todo mundo, dizendo: ‘Vocês não deviam tocar mais comigo trazendo essa porcaria de cara até aqui.”
E tudo isso por conta da participação do Milton no disco de 1975, Native Dancer, do saxofonista norte-americano Wayne Shorter, que havia integrado o quinteto de Miles Davis nos anos 1960.
Mas Miles foi apenas um desafeto em meio a tantos amigos que fez ao longo da carreira; coisa que ele sempre enfatizou em sua vida e também na sua obra. “A coisa que eu mais acredito na vida, além da amizade, é na música. Quando eu faço um amigo, quero que seja para sempre. A não ser que ele não queira. Por mim, não acaba.”, disse, revelando que, apesar de toda a tristeza, foram os mesmos amigos que impulsionaram a não parar de tocar.
“Estou meio triste com a vida. Não com a minha vida, mas com o geral. Quero acreditar, mas não acredito muito no mundo. Principalmente na burrice, na política. Para compor eu não tenho tido inspiração, não.”, revela antes contar sobre sua ida ao Uruguai. “Eu não consigo compor, mas gosto de cantar. Isso eu não quero parar nunca”.
“Fomos tocar no Uruguai. A gente estava louco para conhecer o [ex-presidente José] Mujica. Chegamos lá e soubemos que ele estava louco para conhecer a gente. Fomos à casa dele. É uma coisa incrível porque você não acredita que um presidente possa morar em uma casa tão simples”, comenta. “Uma hora ele perguntou para mim: ‘Como está a política no Brasil? Eu falei: ‘Tá uma merda. Dá vontade até de parar de tocar’. Ele respondeu: ‘Não. Nunca pare de cantar. Porque a música é a coisa que pode salvar o mundo.’
E Milton não demonstra sinais de aposentadoria. Prestes a completar 77 anos, sua saúde parece estar sob controle. “Graças a Deus. Só tenho diabetes, mas estou legal. Estou bem de tudo”, contou. O cantor também segue firme na reta final da turnê Clube da Esquina, que passou por diversas cidades brasileiras e europeias, tocando o álbum homônimo na íntegra e contando com os convidados especiais Lô Borges, Flavio Venturini, Wagner Tiso, Maria Rita, Crioulo, Maria Gadú e Samuel Rosa, com encerramento previsto para o dia 25 de janeiro de 2020 no Rio de Janeiro.
Entrevista completa na Folha.