Séries e filmes antigos deram corpo a um dos melhores álbuns do músico de prisma internacional
Por Luiz Athayde
Desde o começo dessa jornada de indicações sônicas, o Class of Sounds sempre tem a preocupação de incluir o jazz e suas variantes como pauta, mesmo que em nota.
Ainda que o espaço seja voltado para talentos desconhecidos, a gente sabe que seria um pecado não citar os que possuem grandes holofotes. Incluindo Ed Motta.
Isso porque, lá fora, seu nome é largamente reconhecido, enquanto no Brasil, o que é projetado são suas verdades inconvenientes. Sem mencionar a falta de espaço (que não seja de nicho) que sua música tem, dado o atual status quo mercadológico.
Cantor, compositor, arranjador, multi-instrumentista e produtor de mão e boca cheia, Ed é um daqueles casos de quem sabe exatamente o que está fazendo. Porém, nunca se dá por satisfeito – o que é natural, vindo de um artista nato.
Sorte de quem aprecia seu trabalho, tendo em vista que para quem ouve, o resultado soa cada vez melhor. O mais novo exemplo figura seu 14º álbum da carreira, Behind The Tea Chronicles, recém-carimbado via Dwitza Music/MPS Records.
No centro está o “plus” de sonoridades que há tempos ele ama mesclar, como Jazz, Soul, Funk e West Coast/AOR. Estilos esses que também se alinham às trilhas sonoras de filmes e séries antigos que, aliás, ele cita como fontes de inspiração:
“’Colombo’, ‘Barnaby Jones’ e ‘Streets of San Francisco’ (no Brasil, ‘São Francisco Urgente’) são as minhas séries favoritas. Mas também gosto da inglesa ‘Quatermass’, a primeira série de ficção científica do mundo e produzida pela BBC, que foi uma inspiração direta para uma faixa do álbum”, diz Ed Motta. “Também me inspirei em filmes antigos: especialmente o filme ‘Gaslight’, de George Cukor, e filmes de Jacques Tati, Jean-Pierre Melville e Basil Dearden, que são alguns dos meus diretores favoritos e me deram muitas ideias”.
Dizem (e é verdade) que a função do Tik Tok é apresentar “tudo o que interessa” em pouquíssimo tempo. Mas Ed Motta fez melhor: te cativa logo no primeiro segundo ao introduzir o suspense em “Newsroom Customers”.
Já “Slumberland” surge como candidata natural a ponto alto do disco. Praticamente feita sob medida para uma abertura de série setentista, com sorrisos, champagne e roupas em tom pastel.
Ela também apresenta as participações estelares de Paulette McWilliams, conhecida por ter participado do icônico álbum Off the Wall, de Michael Jackson; Philip Ingram e Will Wheaton.
O lado mais balanço não pode faltar e, de fato, “Safely Far” vem ao jeito Ed: com charme. Cortesia das intervenções jazzísticas e dos backing vocals pegajosos.
Em “Gaslighting Nancy”, dá-se a impressão de estamos ouvindo algo mais requintado da banda Chicago, ou mesmo do Journey. Entretanto, o erro mora exatamente aí: as raízes musicais são as mesmas – Soft, Yacht Rock.
Mas a versatilidade de Ed não para por aí. “Of Good Strain” ataca de valsa, e traz uma letra interessante. De um lado está Carla, uma médica preocupada em salvar vidas – por mais incrível que isso pareça.
Do outro, e invejando sua competência está o Doutor, cuja família é dona de vários hospitais. Ele é responsável por espalhar mentiras sobre ela e acaba dando certo para ele, e errado para os pacientes: a maioria acaba morrendo nas suas mãos.
E o desfecho do tema não poderia ser mais claro: “What matters is the judgment of good people” (“O que importa é o julgamento das pessoas de bem”).
Voltando às séries, “Quatermass Has Told Us” simula um relacionamento funk de mote sci-fi com Quatermass Experiment, de 1953. “Buddy Longway” figura mais uma surpresa nesse novo registro ao abordar a faceta Neil Young/James Taylor de Motta. Em outras palavras, folk americano dos clássicos. Pena se tratar de um interlúdio.
“Shot in the Park” volta pela via do jazz com o baixo dando a deixa para aquele abraço apertado em Donald Fagen e Steely Dan. Ao mesmo tempo. “Deluxe Refuge” lembra João Donato, mas com uma pegada mais eletrônica.
Curiosamente, o saudoso músico acreano gravou um disco inteiramente synthpop/funk/jazz com seu filho Donatinho, o fantástico Sintetizamor (2017).
A faixa seguinte, “Tolerance On High Street”, é totalmente cabaré cinematográfico. Aqui é o Ed no seu modus operandi; primoroso, excepcional das melodias. Esses minutos também explicam tamanha raiva de seus detratores, quando ele se refere (não exatamente com essas palavras) ser uma excelência na música tocada no Brasil. Se bem que no caso dele, é muito mais além-mar.
Embora o músico carioca seja um fã assumido do cinema francês e também dos nórdicos Ingmar Bergman e Carl T. Dreyer, “Confrere’s Exile” está mais para um longa de Béla Tarr – A Harmonia de Werckmeister (2000), O Cavalo de Turim (2011). Dramática a ponto de te expelir de imediato ou te envolver até o fim. Por esses lados, envolveu.
Em suma, trata-se de um álbum heterogêneo, mas que possui canções que de alguma maneira se interligam. Como uma trilha sonora mesmo.
Agora, se você ainda não ouviu, peraí, bicho! O nível de Behind The Tea Chronicles é tão alto quanto o seu vacilo por não ter apertado o play a seguir. Absurdo de bom. Perfeito enquanto toma um delicioso e calmante… chá.
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