Álbum do agora duo se converteu em um atestado de sobrevivência em meio à uma perda irreparável
Por Luiz Athayde
Se há uma banda acostumada a danos, perdas e perrengues, essa se chama Depeche Mode. A formação inglesa de Basildon, Essex foi de carregar instrumentos no metrô para se apresentar em programa de TV a dolorosa saída de seu então líder, Vince Clarke; e mais de uma década depois, de seu substituto e importantíssimo integrante, Alan Wilder.
Não bastasse isso, ainda houve consideráveis conflitos internos que ameaçaram o fim do grupo e uma quase morte de Dave Gahan por overdose de speedball – combinação de cocaína e heroína – em 1996.
Mas a última foi um soco na jugular do coração: a morte do membro original Andrew Fletcher, em 26 de maio de 2022, aos 60 anos. Mais que um músico, Andy era o cara das finanças, mas sobretudo um mediador quando o grupo (em especial Dave e Martin Gore) se encontrava em algum embate.
Não à toa, toda essa carga resultou em estafa, consequentemente obrigando-o a dar uma respirada em 1994, desfalcando a banda na primeira vinda ao Brasil naquele ano.
Claro que é impossível não citar a pandemia do Covid-19, que parou o mundo com uma barreira de interrogações. Ainda assim, o trio começou a trabalhar nas composições que culminaram no seu décimo quinto álbum de estúdio, Memento Mori.
O disco já surpreende pelo contexto do qual acabou sendo inserido: “ ’Memento Mori’ significa ‘lembre-se de que você irá morrer’. Soa muito mórbido, mas a ideia que queremos passar é a de que temos de viver todos os dias ao máximo”, revelou Martin L. Gore em coletiva de imprensa realizada em Berlim em outubro de 2022.
Ele acrescentou: “Começamos a trabalhar neste projeto no início da pandemia e os temas foram diretamente inspirados nessa época. Após a morte de Fletch, decidimos continuar porque temos certeza de que é isso que ele faria. Queríamos, e isso realmente deu ao projeto um nível extra de significado.”
E deu. O primeiro single, “Ghosts Again”, faz uma breve conexão com O Sétimo Selo (1957), do cineasta sueco Ingmar Bergman, ao mostrar Dave e Martin jogando xadrez, mas também absortos em seus pensamentos, como “sentimentos desperdiçados” e “significados desfeitos” (como diz a letra), mas de alguma forma estarão juntos novamente à Fletcher como “fantasmas”.
James Ford, que havia trabalhado em Spirit, de 2017, assina a produção em parceria com Marta Salogni (Björk, Black Midi, Temples, Shura, Bloc Party), que também cuidou da mixagem e engenharia sonora. Já a masterização ficou a cargo de Matt Colton (Iggy Pop, The Creatures, Nick Cave & Warren Ellis).
A faixa que abre o play do agora duo é “My Cosmos Is Mine”, outro single por sinal. Como há muitos anos, a última preocupação deles foi com a mídia. Com isso, a primeira regra ao conferir o álbum é não esperar um hit pronto logo de cara – embora isso aconteça naturalmente com a resposta do público.
Mas, entre a gente: que abertura. Extremamente dark e com um leve apelo industrial, como se tivessem pedido algumas notas de rodapé a Bill Leeb (Front Line Assembly).
Em uma onda maravilhosa de synthpop clássico, “Wagging Tongue” toma os sentidos com uma fluidez impressionante. De longe, este é um dos melhores momentos da recente parceria entre Dave e Martin. “Don’t Say You Love Me” segue por uma das paixões do duo, o blues. É uma faixa pesada dentro dos moldes do estilo, e com uma atmosfera tão envolvente quanto sua parente “Cover Me”, do álbum Spirit.
Já o riff inicial de “My Favourite Stranger” me pegou de surpresa ao remeter imediatamente a “How Can We Believe?”, do cantor canadense de Hi-Tech/AOR Keven Jordan. Coincidência fantástica, diga-se, mas sei que o provável influenciado seria ele. De qualquer maneira, esta está mais para um elo perdido entre Sounds of the Universe (2009) e Delta Machine (2013), mas engrandecido por generosas nuances de sintetizadores.
“Soul With Me” é daquelas faixas autoexplicativas. Algo como um Marvin Gaye das sombras, mas estrelado por Martin Gore – praticamente uma lei ele cantar em ao menos uma música. “Caroline’s Monkey” mostra uma leve influência de Mark Lanegan no jeito de Gahan cantar. Inclusive a sonoridade se apresenta como uma curiosa continuação do que fizeram em Violator (1990), adicionada à maestria da experiência. Ou seja, sem soar, nem de longe, um revival.
A essa altura, apontar um pico no gráfico sensitivo ainda é uma tarefa árdua, mas “Before We Drown” é uma forte candidata. Mais uma vez a ambiência é a força motriz por trás de um groove extremamente fluído, aliado à sintonia das vozes da dupla.
Na sequência, outro sinal vindo dos tempos do clássico Violator, como se fosse processado pelo Kraftwerk. O que é uma troca curiosa, tendo em vista que a Alemanha é praticamente a segunda casa do Depeche Mode. E nada mais justo do que dizer, através de “People Are Good”, de onde vem a sonoridade que os tornaram mundialmente conhecidos.
Caminhando para o desfecho, pode-se dizer que “Always You” é uma típica composição de Martin, da mesma forma que da própria banda; pelo seu andamento, sua batida e o modo que ela cresce em meio as ondas synth. Poderia facilmente ter saído em qualquer registro a partir de Black Celebration (1986). “Never Let Me Go” chega com uma pegada ‘synth ‘n’ roll’, quase que clamando para ser tocada ao vivo. Quem sabe ao longo da turnê.
Quase como uma composição estilo força tarefa, ou seja, assinada pelo baterista Christian Eigner, mais Dave Gahan, James Ford e Marta Salogni, “Speak to Me” faz o encerramento na melhor veia espacial/etérea, como há muitos álbuns, ou melhor, anos.
Memento Mori não é apenas uma lembrança de que todos iremos partir um dia, mas que o Depeche Mode não precisa provar mais nada para ninguém. Eles até poderiam ter parado se quisessem. Mas será que conseguiriam? Felizmente, creio que não. No entanto, se trata também de uma afirmação subliminar de sobrevivência, após tantos altos e baixos fora dos palcos e do estúdio.
Em suma, um registro feito e inspirado nas sombras que naturalmente se sobressai como seu melhor álbum desde Ultra (1997). E se o tempo for justo, será mais um disco de cabeceira.
Ainda:
+ Das 12 músicas, 4 são co-assinadas entre Martin Gore e Richard Butler, vocalista da banda The Psychedelic Furs: “Ghosts Again”, “Don’t Say You Love Me”, “My Favourite Stranger” e “Caroline’s Monkey”
Ouça Memento Mori na íntegra a seguir:
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