Aclamado ato blackgaze trouxe de volta as melodias cativantes de seus registros clássicos
Por Luiz Athayde
Um disco não precisa ser necessariamente técnico para emocionar. No entanto, lançar mão de uma boa execução, às vezes pode (ou seja, não é uma regra) fazer a diferença.
Claro que isso (técnica) nunca foi algo que a banda parisiense Alcest teve que se preocupar, afinal, ela é formada por músicos excelentes; produtores, compositores.
Suas composições sempre trouxeram referências diversas, sobretudo da natureza. Não somente da França, mas também Islândia, lugar preferido do vocalista/guitarrista Stéphane Hugues Norbert Paut, mais conhecido como Neige.
Dali saiu o maravilhoso Shelter (2014), com direito a participação de seu (nosso) herói Neil Halstead, do Slowdive. Disco extremamente melódico, envolvente e que só perde em intensidade para o seminal e bucólico Écailles de lune, lá de 2010.
O tempo passou, os lançamentos seguiram e a classe de 2024 chegou para ser presenteada com Les chants de l’aurore. Enquanto você lê esta resenha, já existem portais o nomeando como um dos melhores álbuns do ano.
Na boa, pudera: ele apresenta exatamente as características dos registros acima citados, além de manter a energia de seu antecessor, o pesadíssimo Spiritual Instinct (2019). Inclusive no que diz respeito aos trabalhos em estúdio.
O baterista Jean Deflandre, ou melhor, Winterhalter, cuidou da engenharia sonora; Chris Edrich comandou a mixagem; e o lendário produtor finlandês Mika Jussila (Amorphis, Moonspell, Sentenced, etc) deu o torque final masterizando.
Liricamente intactos, os franceses divagam sobre sonhos, nostalgia, vida, morte, melancolia, existencialismo; tudo de um jeito bem poético. Alinhe ao instrumental e a vocais por vezes celestiais e tenha uma obra-prima do chamado blackgaze em mãos.
E na mente, já que uma audição é pouco para as inúmeras camadas melódicas presentes nele, que começa com “Komorebi”. Nela, nota-se o entusiasmo de Neige pela cultura japonesa, em especial e não surpreendente, animes e suas trilhas. Embora neste caso, me remeta inconscientemente ao longa ‘shoegazer’, All About Lily Chou-Chou (Tudo Sobre Lily, 2001), do cineasta Shunji Iwai.
Entretanto, é na segunda música, “L’Envol”, que está a cereja do bolo. Musicalmente, é uma composição mega clássica deste ato formado em 1999, com todas as partes intricadas e pontes para o momento mais melódico do álbum – e suscetível a diferentes sensações, dependendo do seu estado emocional.
“Seul avec mes souvenirs si chers
L’âme enfin vibrante et libérée
Bien loin
De la surface de la Terre […]Um instant j’ai délaissé
Ce corps appesanti
Depuis toujours me portanto peine”
“Sozinho com minhas lembranças tão queridas
A alma finamente vibrante e liberta
Bem longe
Da superfície da Terra […]Por um instante abandonei
Este corpo pesado
Que sempre me trouxe dor”
Ainda há muito à frente, e é “Améthyste” a responsável por fazer uma espécie de viagem à zona entre Les voyages de l’âme (2012) e o último disco. Na verdade, soa como se fosse um ótimo b-side perdido. “Flamme Jumelle” mostra as aspirações indie rock dos caras: imagine Wild Nothing tentando soar metal. E com muito sucesso.
De alguma forma – distante, tendo em vista que o Alcest não sofre a menor influência de música brasileira –, a instrumental “Réminiscence” lembra o gigante Milton Nascimento, especificamente na música “River Phoenix, Carta a um Jovem Ator”. A conexão em comum está na erudição, mas principalmente na facilidade da estrutura melódica te envolver por completo. Você sequer repara que se trata da faixa mais curta do play.
Contudo, já que mencionei o Japão, a artista Ai Matsui faz as honras com um spoken word em “L’Enfant de la Lune”. Mais uma faixa empolgante, com direito a uma perfeita simbiose entre o black metal, o rock alternativo e o dream pop. Sem falar no dinamismo na mudança de passagens e ambiências.
Para a despedida, a acústica e autoexplicativa “L’Adieu”, onde Neige lembra quão efêmera pode ser nossa existência. No fim, se até aqui você não se emocionou, lhe cabe o bom senso de concordar que se trata do melhor trabalho desde Shelter. Dito isso, não bastou ser pioneiro em um subgênero musical, tinha que ser brilhante.
Ainda:
+ Os arranjos de Les Chants de l’Aurore tiveram as mãos pesadas do multi-instrumentista e produtor islandês Gísli Gunnarsson, e do do músico francês e também produtor Grégory Hoepffner (Radius System, Aurore, Almeeva).
+ Álbum carimbado pela Nuclear Blast em CD, cassete e vinil disponíveis neste link.
Ouça na íntegra abaixo.