Após longa espera, banda crust de Vila Velha estreia com mais raiva do que quando se formou
Por Luiz Athayde
O álbum Chinese Democracy demorou 14 anos para ser editado. Turbulências como trocas de estúdio, produtores, integrantes e meticulosidades afins marcaram o que para muitos – com justiça – é o pior registro do grupo de hard rock Guns N’ Roses.
Em uma escala reduzida, aliás, bem reduzida, mas não menos agonizante, está a banda capixaba Äärma, com o seu EP de estreia Dogmas.
Tendo como núcleo criativo o vocalista carioca residente no Espírito Santo, Giuliano Giusti e o guitarrista então recém-chegado da Itália, Fabricio Lourenço, Äärma nada mais é que a junção dessas forças e suas influências. Em especial após se cruzarem em um show de hardcore na cidade de Vila Velha, por volta de 2012.
Na sequêcia, a missão foi recrutar baixista e baterista: Washington Silva e Leonardo Henrique (ou Leo Aranha, como é conhecido no cenário local). Juntos, os quatro contabilizam várias bandas no currículo, como Gritos de Ódio, Revolta, Morto Pela Escola, Assassinos, Dr. Mobral, Harmonia Turbulenta e Point Blank.
No entanto, à exceção de Gritos, todas tiveram pouca ou nenhuma expressividade fora do perímetro capixaba. Isso sem mencionar Bambine Barbute di Donna Concetta, um dos grupos do qual Lourenço integrou durante sua passagem pela cena italiana.
Seguindo a tradição de uma falange formada por músicos da velha guarda, seja ela qual for, o quarteto partiu para a produção de seu sofrido registro. Inicialmente, o mesmo sairia em 2015, mas acabou “axelroseando” para 2020. Não à toa, a banda esteve perto de encerrar as atividades algumas vezes.
Quem assina a produção Pedro Henrique – ex-guitarrista da querida banda de punk rock The Vintages – via Peu Sessions. O play estendido é configurado em 5 faixas na melhor pegada ríspida do crust/punk, trazendo temas que insistem em não sair de moda: política, religião, existencialismo.
“Dogmas” abre sinalizando o eterno combo paradoxal que envolve a adoração de um Deus por vias repressivas e a manutenção da pobreza. Musicalmente é a que mais se aproxima da Finlândia, especialmente pela bateria atravessada, beatificada pelo Terveet Kädet.
É inclusive a chave mestra das duas faixas seguintes, “O Silêncio dos Parias” e “Controle das Massas”; essa última trazendo uma fala do “filósofo de rua” Eduardo Marinho.
“A Caixa de ilusões não é o que parece ser / Por trás do discurso a fábrica de zumbis / O quarto poder está enganando você” , diz um dos trechos mais contundentes do registro.
Até aqui, tudo ia Discharge e gerações subsequentes, ou seja, bem. Mas, ao chegar em “Fim da Jornada” o grupo adentra em terrenos que vão de Portland a Estocolmo via Gotemburgo; Tragedy, Wolfbrigade, Martyrdöd. Aquele crust com vazão às melodias que poucos conseguem fazer sem soar extremamente pastoso.
“Sonhos e Delírios” – referência direta ao livro homônimo – se sai bem no mesmo formato, e um pouco além. Fechando como uma espécie simulação canela-verde das atuais brigadas escandinavas.
Dogmas traz arte sintomática assinada pela ilustradora curitibana Rosseana Mezzadri, desenhando com maestria o espírito do tempo, que parece nunca ter dado sinais de degelo.
Dada as qualidades das letras e composições, especialmente de orientação nórdica, a torcida é para que o próximo trabalho da Äärma não demore mais 5, 8 anos. Porém, a preferência é que seja com uma outra estreia: de um disco cheio, com tudo que o aqui e o agora pede.
Ouça Dogmas na íntegra pelo Bandcamp.