A admiração e o talento mútuos foram a combinação perfeita para um clássico nato
Por Luiz Athayde
Não dá para falar sobre o universo chamado música brasileira sem citar o super mineiro (nascido no Rio de Janeiro) Milton Nascimento. Simples, óbvio. E, atualmente, um dos primeiros nomes a surgirem na cabeça quando se trata de renovação no jazz, é o da contrabaixista, cantora, compositora e arranjadora norte-americana Esperanza Spalding.
Spalding (39) é fã desde jovem. Começou ao ouvir Native Dancer, disco do saxofonista e compositor de jazz, Wayne Shorter, lançado em 1975. Registro calcado em releituras das composições de Bituca.
Seu passo seguinte seria gravar ao menos uma música. E foi o que fez: registrou sua interpretação de “Ponta de Areia” para seu segundo álbum, Esperanza (2008). Daí, para uma conexão direta, bastava um suspiro. A essa altura, eles já eram amigos, o que naturalmente rendeu uma parceria sônica, com direito a show no Rock in Rio 2011 e outras apresentações pontuais.
No entanto, por incrível que pareça, um álbum conjunto não estava nos planos.
“Eu não pensava em gravar um álbum com ele. Isso parecia impossível”, disse Esperanza (via Uol). “Eu apenas amava sua música, amava muito ele. Amava suas melodias, sua mágica, sua audácia, sua estranheza, tudo.”
Ela continua: “E tive a oportunidade de cantar com ele no Rock in Rio em 2011. Então, em 2022, na turnê de despedida de Milton, quando nos apresentamos juntos em Nova York e Boston, o filho de Milton sugeriu que eu produzisse o novo disco dele. E o que responder para uma proposta dessas? Você não responde, você só parte para o trabalho.”
O resultado é Milton + esperanza, configurado em 16 faixas, incluindo composições totalmente inéditas de ambos, regravações de clássicos de Nascimento e versões primorosas de músicas dos Beatles e até de Michael Jackson. Além, claro, de todas trazerem nuances próprias. Muitas, na verdade.
Esperanza conta que o álbum foi gerado sob uma espécie de trabalho de jardinagem: “… nasceu assim, passo a passo. Depois que eu fiz os arranjos básicos de tudo, eu fui fazendo uma colagem. Ou uma jardinagem. Neste tipo de trabalho, você cria paisagens e vai juntando os elementos enquanto as canções ganham formato.”
Esse processo incluiu a necessidade, vontade e até mesmo a ocasionalidade de ter uma série de convidados especiais. Alguns, de luxo, a exemplo de Paul Simon, Dianne Reeves e a Orquestra Ouro Preto.
Entretanto, o disco soa extremamente conciso na sua proposta, mesmo com os interlúdios feitos com gravações dos músicos em momentos de descontração. Como a intro “The Music Was There” (com Milton explicando em inglês como surgem suas músicas) e “Saci” (todos se divertindo com a gargalhada assombrosa de Milton).
Nem preciso dizer que é exatamente esse o tempero do play; regado a passagens instigantemente intricadas e outras que simplesmente fluem nos ouvidos. “Cais” é uma delas. Bela por si só, é uma das canções do mineiro onde mostra Spalding com o dever de casa feito, no que diz respeito ao nosso idioma. Ouvir este dueto emociona logo de cara.
Ainda que curta, “Late September”, assinada por ela, une jazz e mpb como há muito tempo não se ouvia. É um aquecimento para a regravação de “Outubro”, que começa tão sombria que a conversa por aqui soa bem dark jazz… até a página 2.
Dos quatro caras de Liverpool, a escolhida foi “A Day in the Life”, do disco Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967). O mais legal deles é o leque aberto de possibilidades de novas visões para suas músicas. E por este mesmo motivo, ela soa fantástica.
Em “Interlude for Saci “, você realmente se sente numa floresta, tamanha destreza no arranjo. Quem toca violão na sua subsequente é próprio compositor, Guinga. Feita em 1970, ele contou (via O Globo): “Fui compondo como se estivesse ouvindo a voz do Milton e pensando na figura folclórica do Saci. Só que eu disse ao Paulo César [Pinheiro, coautor] é que eu sentira que ela deveria ter a palavra ‘retinto’.”
Já “Wings for the Thought Bird” traz a música popular brasileira sob a lupa do jazz norte-americano. Em outras palavras, trata-se de uma das tentativas de Esperanza de compor exclusivamente para o disco. Deu tão certo que ninguém menos que Wayne Shorter deu o aval: “Sim, é isso! Quanto mais estranho, melhor!”, disse para ela por telefone.
Musicalmente, também soa curiosa por ser notável o esforço da compositora em adentrar no universo musical brasileiro. Ao contrário de “The Way You Are”, onde você percebe que ela está TOTALMENTE em casa. Curta, porém, cativante.
A versão original de “Earth Song” (Michael Jackson) é de arrepiar. Essa também, graças a estrondosa voz de Diane Reeves e o toque final, dado por Milton. “Morro Velho” faz os ânimos acalmarem. O clima de cinema – cortesia da Orquesta Ouro Preto – é endossado pelo drama da história contada.
Sua sequência se dá com a clássica “Saudade Dos Aviões Da Panair (Conversando No Bar)”; do obrigatório Minas, lançado em 1975. Esta, conta com a cantora inglesa Lianne La Havas, o violinista Lula Galvão, mais Tim Bernardes e Maria Gadú. O cheiro de chão batido do boteco de beira de estrada se mantém nesta releitura.
“Um Vento Passou (para Paul Simon)” chega com uma pegada world music, mas também envolto a algumas curiosidades. Uma delas, é a participação do próprio.
“Eu estava com vontade de fazer alguma coisa com o Paul Simon e criei uma música para ele, que antes eu passei pelo Márcio Borges, para fazer a letra, porque Paul queria cantar em português”, revelou Milton ao jornal O Globo em julho.
Na letra, há referências aos sucessos de Paul, “The Sound of Silence” e “Bridge Over Troubled Water”, quando integrava o duo Simon & Garfunkel. Seja por “Estas águas turbulentas sob a ponte tão serena” (…’Troubled Water’) ou quando “O silêncio é o som que não cabe mais no ar” (… ‘Sound of Silence’).
Por outro lado, os timbres usados em “Get It By Now” remetem aos anos 80, em especial do álbum Miltons, de 1988. Se bem que está tudo em casa: Esperanza a compôs anos atrás, pensando justamente na lenda mineira.
Voltando aos interlúdios, “outro planeta” impressiona por soar muito, mas muito além de uma mera ‘pausa musical’, só com o bate-papo e a trilha de mote sacro. É o tal planeta Minas Gerais; igrejas, montanhas e histórias.
Para fechar, um justo tributo ao lendário Wayne Shorter, tendo a viúva, Carolina Shorter, como convidada. A faixa “When You Dream”, originalmente do álbum Atlantis (1985), se estende para os nove minutos de jazz em sua forma mais livre.
A única parte triste desta colaboração estelar, é que provavelmente não iremos conferi-las ao vivo. Aposentado desde 2022, a última coisa que ele quer é largar o sofá de casa e a visita dos amigos para voltar aos palcos. Aliás, mais categórico, impossível: “Por mim, não tem show”, disse Milton, no alto de seus 82 anos.
Do lado da ganhadora de 4 Grammys, ainda é uma incógnita mesmo se tocará essas músicas nos seus shows. Inclusive, falando em premiações, recentemente Milton + esperanza foi indicado ao Grammy 2025 na categoria melhor álbum de jazz.
Meu nível de surpresa é o extremo oposto ao de sua genialidade por passear entre várias sonoridades, vertentes e convertê-las em algo realmente singular. Quanto a Esperanza, não há como se sentir mais confortável por saber em quão boas mãos (e vozes) o jazz está. Clássico, já nasceu assim.
Ainda:
+ Milton + Esperanza foi gravado em 2023; parte na casa de Milton Nascimento, no bairro do Joá (Barra da Tijuca), Rio de Janeiro; e parte no estúdio Companhia dos Técnicos (antiga gravadora RCA) em Copacabana.
Ouça na íntegra no Bandcamp, ou a seguir.